Parnaiba, 17 de Dezembro de 1996.
À memória de Gustavo Corção, que hoje faria 100 anos.
Não me lembro se alguma vez escrevi, seja me queixando ou me gabando de ser Professor. Hoje, ao receber minha carta de aposentadoria, me vieram reminiscências desses mais de quarenta anos de magistério que fizeram fluir as lágrimas mais pesadas que já tive nos olhos. Deixo registrado que a decisão pelo ofício me foi um dos poucos acertos que tive na vida. Executei com todo o amor que tenho, e, por mais duro que fosse, se preciso, faria tudo novamente.
Recordo-me que decidi pela carreira quando ainda estava na escola, entre 15 e 16 anos. Escolhi-a, a princípio, por simples gosto e afinidade. Mais velho, descobri que se tratava, romanticamente, do meu Vocare. Os primeiros passos se deram ainda na minha antiga escola – da qual poucos momentos são dignos de recordação –. Levava meus colegas à compreensão de temas para eles eram complexos. Eu desmistificava os impactos da globalização, as cores dos mapas, o processo de colonização da América e a História do Brasil. Poucas vezes me sentia tão formidável como quando fazia alguém entender um assunto.
Já havia também a clara inclinação e o gosto pelas ciências humanas. De nada sabia sobre matemática, nem fazia questão por tal. Apenas sofria ao ver o boletim com as péssimas notas. Só era feliz de verdade durante as aulas de História, Literatura e Geografia – aulas que tenho uma eterna dívida de gratidão por terem mudado minha vida – e quando cruzava o portão da escola para ir embora. No fim, foram apenas os verdes anos da problemática fase que é a juventude.
Durante o processo burocrático de aposentadoria, estive lendo um livro chamado Dois Amores, Duas Cidades. Refletindo sobre os possíveis capitais simbólicos desses dois amores, recordei-me de muitas vezes ouvir pessoas versando sobre a existência de diversos tipos de amores, e que estes vão nos aparecendo e fazendo mais sentido ao longo da vida. Claro, isso não vale unicamente e simplesmente para pessoas com quem você venha a se relacionar afetivamente no sentido homem-mulher, mas também para amizades, livros, lugares e todos os gostos pessoais mais abstratos.
Devemos aqui abrir apenas uma exceção: para times de futebol, já que é senso comum que não há amor que possa fazer alguém substituir o seu time. E, no meu coração, o Flamengo é puro amor.
Partindo desse princípio, digo que existem as pessoas que chamo de “Teóricos-Partidários” e Fiscais das formas de amar. Segundo esses mesmos, os amores mudam de acordo com visões e vivências de cada indivíduo. Há o partido dos que acreditam que existem os “amores da sua vida”, corriqueiramente chamados de últimos românticos, por acreditarem fielmente naquele tipo de amor romantizado, tão característico da nossa literatura. Acreditam, por exemplo, em almas gêmeas que estão destinadas a se encontrar e que viverão felizes mesmo com todas as adversidades. O amor que dura para sempre.
Por outro lado, os partidários da versão dos “Amores para a sua vida” são normalmente pessoas mais velhas, realistas e pés no chão, que, de modo geral, já passaram por desilusões ou simplesmente nunca encontraram um amor de verdade. Também já ouvi os que dizem haver os tipos de amor que “a vida nos traz por acaso”, os “passageiros” e o muito comentado dos que amam por “cerca de quinze meses e onze contos de réis”.
Nunca fui adepto de nenhuma dessas classificações, mas, recentemente, por observação, vi que meu amor pode ser classificado dentro desses padrões quando se trata das Ciências de Heródoto. Seria basicamente assim: a História é o amor da minha vida, mas pude desfrutar apenas por um breve período, e hoje, no máximo, me serve como uma boa amiga, que o meu outro amor, a Geografia – o amor para a minha vida – aceita, pois, dessa amizade, ela colhe bons frutos. Já a conheci um pouco mais maduro, ela me acolheu e me amou como nenhuma outra. Foi com quem me casei, tenho filhos e uma vida.
Recordo que as conheci ao mesmo tempo, mas não me recordo de qual delas amei primeiro, nem de quando comecei a amá-las, mas pouco isso interessa, pois ambas sempre foram companheiras ao longo da jornada.
Fui zombado por amar meus amores, afinal, eu quis seguir sendo Professor. Passei pelos mesmos risos e escárnios que alguém que escolheu a mesma profissão que eu já passou. Fui chamado de louco. Ouvi risadas, pessoas que não entendem: — Onde você está com a cabeça? Ser professor? Que absurdo! O salário é tão desprezível. Você tem que ser médico, engenheiro, advogado… —.
Naquele tempo, não me parecia muito enigmático que fossem os mais variados tipos de pessoas que eu conhecia dizendo isso, dos mais ricos aos mais pobres, ou, para minha surpresa, os próprios professores. Mais tarde, quando comecei a tentar entender mais um pouco o enigma da riqueza, na qual Dois Amores, Duas Cidades também versa, mesmo sem penetrar nela profundamente, e procurando saber como funcionam certas sociedades, compreendi melhor toda a situação. Pois, sem querer parecer romântico, já que as dificuldades também são inúmeras, para mim ser professor nunca foi apenas uma mera profissão, simples ganha-pão. Nunca gostei daqueles tipos, que chamo carinhosamente – para não ser mal-educado – de “Pseudo-Professor-Intelectual-Sabe-Tudo” que ingressam na profissão apenas para fazer carreira e ostentar o título de Doutor.
Ser professor é bem mais que isso, bem mais que qualquer coisa, e, sem querer cair nos clichês, é, sem dúvida, ser um diferencial e mudar a vida das pessoas.
Em todo esse tempo, fui Professor para os meus colegas de turma, para minha Mãe, para meus alunos, para meus filhos – em casa e na escola –, e tive ainda a graça de ser para meus netos. Alguns dos meus antigos discípulos são hoje alguns dos meus melhores amigos. Tudo isso mostra a profundidade de raízes que a profissão deixou. Por isso, principalmente depois que a maturidade chegou, muitas vezes eu parei de me queixar, apesar de saber que o magistério é mal remunerado, e mediante isso, pouco estimado, e por isso, muitas vezes é ingressado apenas por pessoas sem amor pelo ofício ou simplesmente frustradas por não terem passado para “cursos de maior valor e prestígio”.
Um pensamento tristemente comum dentro de ambientes mesquinhos, muito graças a outros tipos de Pseudo-Intelectual, que estão mais interessados no status social que as profissões, os títulos acadêmicos e o dinheiro podem dar, que no próprio conhecimento e no valor humano inerente.
Voltando ao magistério, e para não falar que tudo são flores, contudo ainda insuficiente para me queixar dos espinhos do ofício. Existiam algumas partes chatas, é verdade, como corrigir pilhas de provas. Tarefa monótona e enfadonha, que só deixa de ser enfadonha para se tornar doce, porque há diversos tesouros escondidos dentro das avaliações mensais dos alunos, que, dependendo do caso, podem variar entre tolices, baboseiras, piadinhas sem graça, trocadilhos, desenhos e recadinhos, que se tornam ainda mais especiais vindo das crianças, pela sua honestidade quando falam que gostam da gente.
Enfim, não insistirei muito na tolice, nem nas baboseiras. Elas não são as maiores, nem mais abundantes, do que as nossas próprias. É pelo menos uma tolice que se considera mais esperançosa e humilde. A tolice do aluno se pode perdoar muitas vezes pelos erros que a idade permite cometer, ou por se tratar apenas de algumas notas vermelhas.
Com o passar do tempo, ele pode recuperar toda pureza e a dignidade comprometidas, que fica mais fácil ainda quando se trata apenas das notas. Sentia que, em sala, devia encorajá-los a perguntarem, a participarem, a aproveitarem o privilégio escolar de poder falar, falar e errar, sem culpa, livremente. Ensinei-os com todo o amor que eu tinha, como me foi ensinado por um dos professores que mais admirei na minha vida. Esse professor, que tinha nome de santo, me fez questionar a origem das minhas certezas, aprender a falar apenas aquilo que realmente se domina, que se consiga construir uma argumentação sólida.
Tudo, repito, tudo valeu a pena. O trabalho, apesar de alguns espinhos, me trouxe muitas rosas, que hoje guardo nos meus jardins da memória, e as mais especiais nas roseiras do meu coração.
Faço, sem nenhum tipo romantização, uma apologia ao serviço com amor, vocação e valorização. Vejo que uma sociedade só pode progredir, se harmoniosamente cada um seguir o seu ofício com esses elementos. O cantor há de cantar, e o professor há de ensinar. O exercício de cada função só atingirá um nível alto se cada um puder contar com os outros naquilo que escapa ao seu domínio.
Sei, no entanto, que muitas pessoas, seja por pressão familiar, social, percalços da vida ou que simplesmente não puderam, acabaram não sendo aquilo que sempre sonharam e têm muitas vezes vidas amarguradas. A vida é feita de escolhas, e muitas vezes essas escolhas são pesadas. Porém, não é somente por isso que muitas delas decidem abandonar a sala de aula ou optar por uma carreira em que se sintam mais valorizadas e reconhecidas. Muitas vezes, é uma luta diária contra a desvalorização, a falta de apoio e a desconfiança que enfrentamos como educadores.
Entretanto, mesmo nos momentos mais difíceis, encontrei forças nas pequenas vitórias. O sorriso de um aluno que compreendeu uma matéria pela primeira vez, a gratidão que se revela em um simples “obrigado” ou o brilho nos olhos de quem se apaixonou pela leitura e pela aprendizagem são o combustível que nos move. Esses momentos são os verdadeiros tesouros do magistério, que superam as dificuldades e as frustrações.
Por fim, ao encerrar este ciclo, levo comigo não apenas as lições que ensinei, mas também as que aprendi. Acredito que, no fundo, cada aluno deixa uma marca na vida do professor, assim como cada professor deixa uma marca na vida de seus alunos. É uma troca constante de saberes e experiências que nos transforma e nos faz crescer.
Agora, ao receber a aposentadoria, olho para trás com gratidão. Cada lágrima, cada risada, cada desafio e cada conquista se entrelaçam para formar a história do meu magistério. Se eu pudesse voltar no tempo, não mudaria nada. Ser professor foi, é e sempre será uma das maiores alegrias da minha vida.
Assim, concluo que, mesmo fora da sala de aula, continuarei a ser professor. As memórias, os ensinamentos e os amores que vivi nessa jornada permanecerão comigo para sempre. Levo comigo a certeza de que o amor nunca se apaga, e que cada um de nós, a sua maneira, deixa um legado.
por Eric Costa e Silva, professor da rede privada de Parnaíba