Quem é esse cantando no som, vovó? Perguntou Otelo, enquanto o cheiro de café fresco invadia a pequena cozinha da casa no Bairro São José. É o Cartola, meu filho. Ah, como eu gosto dele. Respondeu dona Maria, ajeitando o avental enquanto sorria para o neto.
Otelo sempre se perguntava sobre a mãe, que havia partido para trabalhar em Brasília e quase nunca mandava notícias. O pai, ele não conheceu — só através de histórias que a avó contava. Morreu antes dele nascer, num acidente de trabalho. Ficou então sob os cuidados da avó, que já era viúva e de alguns tios que iam visitar.
Nesse período, Dona Maria já estava aposentada, mas não queria deixar de trabalhar — Ainda tenho força, não estou morta! —, dizia ela. Acordava todos os dias religiosamente com o nascer do sol. Preparava o café da manhã e o neto pra ir pra escola. Fazia tudo isso, da maneira que mais gostava, cantando. Apesar de ter tido uma vida difícil, era uma senhora calma, sem um pingo de amargura. Sempre gostou de música. Com esforço, comprou um rádio e uma vitrola. Tinha todos os discos do Martinho da Vila, Dona Ivone Lara, João do Vale, Dominguinhos e Cartola. No meio da coleção, haviam até alguns internacionais, Amália Rodrigues, Mercedes Sosa e B.B. King, dentre outros que reclamava por não entender muita coisa. Os dois viviam uma vida tranquila. A avó fazia tudo o que podia pelo neto, sempre cantando com uma voz doce:
“Salve a mulatada brasileira!
José do Patrocínio, Aleijadinho
Machado de Assis que também era mulatinho
Salve a mulatada brasileira!”
“Muriquinho piquinino, muriquinho piquinino,
Parente de quiçamba na cacunda.
Purugunta aonde vai, purugunta aonde vai,
Ô parente, pro quilombo do dumbá.”
Dentro desse ambiente, não demorou muito para que Otelo também despertasse para a arte. O mais velho dos seus tios, conhecido como Romeu Cachaça, era um exímio tocador de violão. De dia, trabalhador. De noite, boêmio. Um daqueles tiozões simpáticos e cheios de vida. Sempre que chegava em casa brincava com o sobrinho, levava na cacunda e também cantava. Foi ele quem ensinou Otelo as suas primeiras lições de violão e em um dos seus aniversários, lhe presenteou com um.
— Então, o que vai tocar primeiro? – Disse o tio com orgulho –
— Não sei, queria tocar Elvis mas não sei cantar em inglês. Talvez, alguma modinha. Ouvi na escola que a legítima música brasileira. Ou, ou senhor pode me ensinar aqueles repentes.
— Repente? Repente não se ensina, se sabe. – Disse ele rindo do sobrinho.
A avó, ouvindo aquilo, disse:
— Toca Cartola, meu filho.
— Verdade, vovó! O tio já tinha me ensinado.
— Ainda se lembra dos acordes? – Respondeu o tio –
— Sim, lembro.
— Pois toca a introdução aí, vamos cantar.
E Otelo começou a dedilhar. Algumas acordes com pestana ainda saiam desafinadas, mas nada que a prática não pudesse ajeitar.
Bate outra vez
Com esperanças o meu coração
Pois já vai terminando o verão
Enfim
Assim, Otelo foi crescendo. E, como a vida não é um morango, começaram a surgir os seus primeiros dissabores. Primeiramente, um problema que já vinha desde criança. O seu nome: Otelo, — que nome esquisito — diziam. Logo depois, as primeiras frustações amorosas. Tinha o corpo franzino, as mãos com os dedos muito grandes, nariz e os lábios grossos e pouco cabelo, além disso quem se interessaria por alguém que gosta de coisas tão fora de moda? — Ele, músico? Sei não. É, dizem que na casa dele tem discos e até que compram alguns livros. Mas, pra que, se provavelmente ele nunca vai se formar? Minha mãe diz que livro é coisa de doutor. Verdade, pedantismo! Coisa de doido. Eu mesmo, nunca li um. —. Acabava motivo de muita chacota. Já sabendo disso, a situação só piorava quando começou a trabalhar em alguns bicos. Ouvia comentários maldosos e olhares atravessados. Um dia, ao voltar para casa, mais tarde da noite, via algumas pessoas lhe olhando de lado. Ouvia os comentários: — Sujeitinho mal-encarado, não olhe para ele. — Aquilo o doía, mesmo que ele tentasse ignorar. O que teria de errado com ele? Se perguntou.
Em um desses dias, depois da escola, chegou em casa visivelmente abatido. Ao abrir a porta, o cheiro de café fresco e o olhar calmo de dona Maria o acolheram na pequena cozinha. Ela estava sentada, tomando café enquanto lia um jornal, mas parou ao vê-lo cabisbaixo.
— O que foi, meu neto? — Perguntou ela, a voz suave.
Otelo deixou a mochila no chão, suspirando.
— Na escola, na rua… A gente ouve cada coisa. Me olham com desconfiança, atravessado. Falam de mim pelas costas e outras coisas. Vó, deixa eu fazer uma pergunta. A senhora me disse certa vez que foi você quem escolheu meu nome, certo?
— Sim, fui eu mesma. Por que?
— Esse nome… Otelo… É tão estranho.
— É um nome lindo, meu filho.
— Onde foi que você arranjou ele?
— Sabe, foi há muito tempo. Eu ouvi sobre ele numa história que me contaram quando eu era menina, na casa que minha mãe trabalhava. Era uma casa grande, de um casal de professores. A gente era quase da família e a dona sempre lia antes de dormir para mim e para as filhas. Ele faz parte de uma peça famosa, de teatro.
— E por que esse tal de Otelo?
— Porquê o Otelo é como a gente, é famoso e é o protagonista da peça. É difícil a gente encontrar personagens assim.
— Verdade. Parece que as coisas pra gente são sempre mais difíceis, né? Todo mundo duvida.
— Ah, meu filho… Não só parece, é mais difícil. A gente tem que ser pelo menos duas vezes melhor. É a verdade, mas a gente consegue. Vem cá, olha pra mim. Tá vendo ali, aqueles discos? O primeiro é do Cartola. Olha de onde ele veio. Ele também é como a gente e olha onde chegou. Não só ele, tem vários. Lembra do Padinha, nosso vizinho que foi embora? Ele hoje é jornalista, escritor famoso, lá em São Paulo. Faz até parte de uma tal de Academia de Letras daqui, que só entra gente importante. E a irmã dele? É Doutora! A gente também tem o nosso lugar.
— É, a senhora tem razão… — respondeu ele, mais calmo.
Dona Maria sorriu.
— E como está indo com o violão?
— Melhorando. Aprendi a cantar também.
— Então, pega ele ai, vamos cantar pra você ficar melhor.
Otelo sorriu pela primeira vez naquele dia. Pegou o instrumento e disse:
— Qual música?
— Escurinha. — pediu ela. — Sabia que o Cartola transforma tristeza em música?
Otelo dedilhou as primeiras notas, e o som suave encheu o pequeno cômodo de alegria, afastando qualquer amargura.
— Isso… – Dizia a vó.
E vinha o dueto:
“Escurinha, tu tem de ser minha de qualquer maneira
Te dou meu barraco, eu te dou meu boteco
Que eu tenho no morro de Mangueira.
Comigo não há embaraços
Vem que eu te faço, meu amor
A rainha da escola de samba
Que o teu preto é diretor.
Quatro paredes de barro
Telhado de zinco, assoalho de chão
Só tu, escurinha, quem está faltando
No meu barracão.
Sai disso, bobinha
Aí nessa cozinha levando a pior
Lá no morro eu te ponho no samba
Te ensino a ser bamba, te faço a maior”
Otelo foi crescendo e continuou na escola e no trabalho. Foi na mesma escola que ele, contrariando qualquer estatística sobre a média de leitura brasileira, começou a ler os versos de Cruz e Souza, Castro Alves, Cecília Meirelles e Drummond. Foi na biblioteca da escola que ele encontrou, leu e se emocionou pela primeira vez com o seu livro — Otelo, o mouro de Veneza —. Sua maior emoção, foi entender o que sua avó queria dizer. Lembrou da conversa — Otelo, é como eu. — Conheceu o também leitor de Shakespeare, Machado de Assis. Tudo aquilo lhe encantava e trazia mais acalento ao seu coração. E não parava, veio também José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Lima Barreto, Assis Brasil. Encontrou até alguns livros do Padinha, que sua avó falava. A cada dia, ficava mais refinado no violão. Até que apareceu um convite que mal sabia, viria mudar sua vida.
— Você é Otelo, sobrinho do Cachaça, certo? É verdade que você toca e canta? – Disse seu Carlos, dono de um bar conhecido, ao encontrar o menino no cais.
— Sim, sou. Eu canto também, mas é por hábito.
— O seu tio é meu amigo, falou muito de você. Quer ir cantar no meu bar qualquer dia? Pago por hora.
No momento, ele não sabia o que responder. — Eu nunca cantei em público —, pensou. Mesmo surpreso e bastante nervoso, aceitou. Uma semana depois, lá estava ele, cantando. Foi uma, duas, três, quatro vezes e a cada vez chamava mais público e atenção. O comentário do Joaz até a Coroa era o novo cantor, que até atenção das meninas agora conseguia chamar. — Viu como ele cantar bem? — O bar, que já era afamado, contava com uma rede social, para onde vídeos começaram a ir. Seu talento logo chamou atenção. A medida que os vídeos iam para as redes, incluindo das suas próprias composições. Recebia mais convites. Um, em especial, veio diretamente do Rio de Janeiro. Imagine só que emoção, cantar no Rio de Janeiro, ele, que tanto sonhou. Arrumou as malas e foi. Com Dona Maria, sempre ao lado, foi. O tempo foi passando, Otelo segue cantando, apesar de suas dificuldades. Ainda sofria com alguns dos mesmos problemas de outrora, que infelizmente não deixava amargar. Em um bar, depois de certa situação deveras incômoda, se emocionou como nunca ao cantar:
“Crime, é mais que um crime
É desumanidade, essa perseguição
É o cúmulo da maldade
Se todo mundo sabe que nós nos casaremos
Quer queiram, quer não.”
Enquanto a avó, orgulhosamente, assistia, também às lágrimas. Otelo começou a compor mais, e gostava de definir seu estilo como Armorial, dizia: — Ninguém definiu melhor as coisas que eu penso sobre música que o Ariano, temos que fazer uma arte erudita a partir da cultura popular. Temos que resgatar isso. Eu gosto de cantar sobre o povo, com o povo e para o povo.
Apesar das alegrias, na cidade Maravilhosa, Otelo viu que apesar de seu esforço, sua música não era a que fazia mais sucesso. O que estava em moda, eram outras coisas. Aquilo o entristecia. Um dia, ele se juntou a um grupo musical e, ao mesmo tempo, decidiu se aprofundar um pouco mais nos estudos. Também virou universitário. — Eu também quero ser um doutor, vovó. Um doutor em cultura — Foi nesse período que conheceu Jimmy, que, além de músico, era professor e pesquisador da UFRJ. Logo os dois se tornaram melhores amigos. Conversavam sobre tudo, principalmente sobre música. Certo dia, durante uma conversa após uma apresentação, Otelo abriu seu coração:
— Sabe, Jimmy, eu ainda acho que dão pouco valor pra gente… Pro que a gente ainda canta… Ou, pelo menos, não tanto quanto se deveria. Onde estão aqueles bares de outrora? Eu não sou daqui, mas eu sempre ouvia falar. Aqui, nesses shows, só vem gente que tem dinheiro. Onde está o povo? Tudo o que eu vejo agora se resume a esses tais de trap e funk. Onde estão os sambistas do morro? Onde está a nossa música? Que fale sobre a nossa tristeza, sobre o nosso Brasil. Parece que andam escondidos. Não só aqui, mas em todo o lugar é isso.
Jimmy, pensativo, respondeu:
— Não estão escondidos, meu amigo. Eles ainda existem, como a gente. O problema do Brasil. É mais profundo do que parece. Não sei.. Talvez seja um questão moral, até mesmo espiritual. Veja só. Me peguei pensando uma vez no seguinte: Apesar das dificuldades que existiam, esses morros produziram Cartolas e Machados de Assis… E hoje? O que produzem? Ainda ontem, na universidade eu tive uma discussão. Imagine só, ouvir de uma desses professores especialistas em cultura, vindo do Leblon, falando em povo. Falando sobre música popular. Dizendo para os jovens que não é preciso sair dos morros e que a cultura que eles precisam está lá na periferia. Eu, logo pensei. O que seria de Machado se ele não tivesse saído do Morro do Livramento? Se aquele padeiro não o tivesse ensinado francês? Se ele não tivesse lido Shakespeare? Se mesmo com a sua gagueira não tivesse se arriscado a escrever? Quem lembraria dele? Antes, diziam que a gente não podia sair. As coisas mudam, hoje dizem que a gente não precisa. Descemos tanto de nível. Quando tudo baixa, o mais difícil é não baixar junto. Parece que vivemos em uma ficção brasileira. Ou a gente só pode dar certo no futebol, no funk ou se virar bandido. Mas sabe qual é o pior de tudo? Quem diz o contrário? Onde está um Lima Barreto para falar sobre isso?
Otelo balançou a cabeça, concordando.
— Pior que esses dias ouvi um certo jovem dizer uma gíria que está se tornando popular a favela venceu só porque conseguiu comprar uma Mercedes. Mas vencer estaria apenas nos bens materiais?
Jimmy suspirou.
— A cultura, meu caro, é aí que está o ponto. Precisamos resolver os problemas da cultura, dar mais cultura para o povo. E, principalmente, dar mais Brasil aos brasileiros.
Otelo sorriu, mas com um tom reflexivo.
— Acho que o povo no fundo já sabe disso, Jimmy. O que você está dizendo, eu já ouvi, com outras palavras, de uma senhora já idosa.
Jimmy, curioso, fez uma pausa antes de perguntar:
— Agora que você mencionou… Nunca te perguntei isso. Você uma vez me disse que foi sua avó que lhe deu seu nome. Ele vem da peça de Shakespeare, certo?
Otelo confirmou com um olhar sereno.
— Sim, é exatamente por isso mesmo, meu caro.
Após essa conversa, Otelo passou a refletir ainda mais sobre seu papel. Ele sabia que seu nome carregava e tudo o que ele teria que fazer. Ao lado de Jimmy, continuaram a criar música, mas agora com mais um propósito: Levar cultura, dignidade e voz às pessoas.
Em uma de suas apresentações no Rio, ao final de uma das músicas, Otelo olhou para a plateia e, com um sorriso calmo, disse:
— A gente vence, não só pelos aplausos, mas pelo que fazemos florescer dentro de nós e ao nosso redor.
A resposta veio em forma de um longo e emocionado aplauso, estando dona Maria, às lágrimas na primeira cadeira. Todos, ainda cantaram juntos mais uma:
A sorrir
Eu pretendo levar a vida
Pois chorando
Eu vi a mocidade
Perdida
Finda a tempestade
O sol nascerá
Eric Vinicius 15/10/2024. Eric Vinícius é contista e professor da rede particular de ensino em Parnaíba.