O Viajante. Pistachização e Cultura. *Eric Vinicius.

Recentemente, saiu uma matéria na BBC chamando atenção para um processo que vem ocorrendo no país, que denominaram de “Pistachização” do Brasil. A notícia faz alusão às altas quantidades de nozes que vêm invadindo o mercado nacional – e que você provavelmente notou nas docerias. Mas de onde surgiu esse fenômeno, sendo que o Brasil não tem sequer meia dúzia de árvores de pistache plantadas? Bem, a resposta é simples. Essa inundação do mercado nacional ocorre em um momento em que os Estados Unidos batem recordes de produção e precisam encontrar meios para escoar a mercadoria, fazendo com que haja a necessidade de um fluxo de exportação maior, e o Brasil acaba sendo um dos maiores receptores.

Ao ler essa notícia, logo me veio à mente outros tipos de pistachização que ocorrem por aqui há pelo menos três séculos: o de seguir estritamente modelos estrangeiros, tentando incorporá-los e colocando-os acima da nossa própria cultura. Ao ler os textos de Machado de Assis, José de Alencar ou outros cronistas do Brasil Império, vemos essa tendência partindo das nossas elites a imitar o que vinha da França. O Romantismo virou febre. A moda vinha de Paris. Moças prendadas tinham obrigação de aprender francês. Mesmo no fin de siècle – retratado por Lima Barreto –, com o golpe da República, nossos modelos continuaram franceses. O Positivismo era a moda, a reforma Pereira Passos tentava transformar o Rio de Janeiro numa Paris dos Trópicos, e até meados de 1920 vivíamos a nossa própria Belle Époque.

A virada do Século XIX para o XX foi, de fato, um período de mudanças, que iam desde as formas de governo até as mentalidades. Portanto, também era preciso novos modelos. José Murilo de Carvalho, em A Formação das Almas, mostra como o “Novo Brasil”, sob a República, continuou a adotar modelos estrangeiros. Embora a influência francesa permanecesse evidente, especialmente no positivismo, o modelo americano também começava a ganhar espaço, simbolizado por um dos primeiros esboços da bandeira nacional: uma cópia da bandeira estadunidense, mas em verde e amarelo.

Notavelmente, o Brasil só vem a mudar o seu “modelo cultural” de francês para o americano a partir da Segunda Guerra Mundial (1939–1945). Com a aproximação de Vargas e a política da boa vizinhança, tivemos aqui uma verdadeira invasão cultural. Havia pouco tempo, quando Noel Rosa, em 1933, já notava esse fenômeno e retratava em versos. Segundo Noel, na música Não tem tradução: “O cinema falado é o grande culpado da transformação, dessa gente que sente que um barracão prende mais que um xadrez. Lá no morro, se eu fizer uma falseta, a Risoleta desiste logo do francês e do inglês. A gíria que o nosso morro criou, bem cedo a cidade aceitou e usou. Mais tarde, o malandro deixou de sambar, dando pinote e só querendo dançar o fox-trote. Essa gente, hoje em dia, que tem a mania da exibição, não entende que o samba não tem tradução no idioma francês. Tudo aquilo que o malandro pronuncia com voz macia é brasileiro, já passou de português. Amor, lá no morro, é amor pra chuchu. As rimas do samba não são ‘I love you’, e esse negócio de ‘alô, alô boy’ e ‘alô Johnny’ só pode ser conversa de telefone.” Trinta e três anos depois, em 1966, já em um contexto e um Brasil diferente, outro artista, Adoniran Barbosa, também retratou essa mudança nos versos de Já Fui Uma Brasa. Ele relembra do “Rádio que hoje toca ie-ie-ie o dia inteiro tocava Saudosa Maloca” e lamenta como a juventude, representada pelos meninos do ie-ie-ie, parecia abandoná-lo. No entanto, ele também reconhece que essa nova geração era “a voz do povo” e, mesmo nostálgico, mostrava esperança ao dizer: “eu, que já fui uma brasa, se assoprarem, posso acender de novo”.

A cada dia que passa, todas essas influências estão mais perceptíveis, causando mudanças nos nossos modos de vida. Exemplos disso são os anglicismos cada dia mais corriqueiros na nossa língua e uma série de teorias importadas que tentam discutir os problemas brasileiros. Veja bem, não se trata de nenhum tipo de preconceito, falso nacionalismo ou reacionarismo, mas de tentar enxergar o que é nosso com nossos próprios olhos.

Imagine que, há mais ou menos um mês, vi um certo grupo autodenominado patriota discutindo o cenário político brasileiro a partir de Russell Kirk, Roger Scruton e Jordan Peterson, enquanto, ao perguntá-los, descobri que mal conhecem Gilberto Freyre, Joaquim Nabuco e Gustavo Corção. Ou, sobre um querido amigo que estando de um lado oposto, apenas me falava sobre Michel Foucault, Sartre e Thompson, mal conhecendo Caio Prado Júnior, Evaristo de Moraes e José Paulo Netto. Nesse cenário, lembro de Ariano Suassuna, mestre de todos nós, como se fosse um Dom Quixote, lutando contra moinhos de vento para proteger e valorizar a nossa cultura.

E, reiterando, não se trata de preconceito. O que vem de fora é importante. Devemos muito a Hemingway, Dostoiévski, Dante, Cervantes. Ou a Kubrick, Hitchcock, Kurosawa e qualquer grande artista em qualquer forma de arte. Mas, tentar ao máximo fortalecer o que é nosso, para que o que venha não nos modifique, e sim, acrescente. Ao mesmo tempo, então, conhecermos bem José de Alencar, Machado de Assis, Manuel Bandeira, Lygia e Clarice. Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos e Mário Peixoto. Não apenas esperarmos que os nossos sejam valorizados quando uma TikToker americana faça um vídeo elogiando Brás Cubas.

Ariano ainda nos dá uma resposta para o que seria uma arte brasileira genuína. Erudita, tendo como base a cultura popular: o Movimento Armorial. Eu mesmo não estou nem perto de ser capaz de definir o que seria uma arte brasileira, mas uma arte Armorial define muito bem isso. Imagine só, uma em que o popular e o erudito sejam inseparáveis. Com temas de um valor inimaginável e ao mesmo tempo engraçados. Uma espécie de arte barroca, profundamente cristã, dividida entre o sagrado e o profano. Verdadeiramente honesta, com uma linguagem belíssima. Uma arte com tantas qualidades que não seja apenas brasileira, mas universal. Afinal, para que tanto pistache, se temos tanto brigadeiro? Disso, carrego minha reponsabilidade. Penso eu: Nesse meio, como não deixar meus mestres serem esquecidos?

*Eric Vinícius é professor da rede privada, cronista, ensaísta e viajante cultural nas horas vagas.

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Pádua Marques

Jornalista, cronista, contista, romancista e ecologista.

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