Era coisa de colocar os pés fora da rede e esfregar os olhos ainda remelentos, limpar os cantos da boca ainda com a escuma da noite, aquela que gente grande chamava de mingau de alma, e lá estavam os meninos indo um a um e em fila tomar a benção de suas mães naquele domingo celebrado em maio. O Dia das Mães, fosse a que hora a gente acordasse, era um dia alegre pra nós meninos dentro de casa.
Um aqui trazia de presente um sabonete Glicerol, uma lata de talco Gessy embrulhados em papel colorido, uma chinela de couro, um objeto de uso na cozinha de casa. Outro menino vinha tímido escondendo atrás das costas um metro e meio de pano de chita, comprado no seu Antonio Thomaz e que daria um vestido e tanto. E outro menino ou menina trazia um cartão de papel feito na escola, pintado um enorme coração vermelho ou cheio de flores com aquelas palavras escritas com letras de tamanhos desiguais.
Mas era naqueles presentes e naquele único dia do ano onde estavam os corações deles. Eram os presentes, humildes, de qualquer coisa, às vezes conseguidos e comprados com algum dinheirinho guardado por meses e meses. Mas era a gratidão por tudo que as mães fizeram naquele ano pelos meninos dentro e fora de casa.
Porque na sexta-feira, dois dias antes havia a festa nas escolas em homenagem às mães. Era uma alegria das crianças pobres, mas naquele dia estavam de banho tomado e de roupas limpas e mudadas, passados talcos e penteados. Era até de uma certa forma uma chateação pra algumas daquelas mulheres em terem que largar os que fazer em casa pra irem receber um pedaço de papel pintado e ouvirem os filhos recitando uns versos ou canções que falavam de amor e obediência. Aquilo partindo dos meninos e meninas era tudo da boca pra fora! Mas as mães estavam felizes naquele dia.
As professoras zelosas haviam ensaiando por semanas inteiras as atrações da festa tão esperada de todo ano. Muitas tiraram do próprio bolso o dinheiro pra comprar os bolos e as bebidas pra aquele dia tão especial. Algumas crianças no meio de nós eram escolhidas pra cantar “Mamãe”, a conhecida canção na voz de Ângela Maria, ou “Flor Mamãe”, o estrondoso sucesso na voz de um menino que foi um prodígio, José Leão.
E no final daquela festa tão particular e ao mesmo tempo tão imensa, em que às vezes de forma tímida os meninos até beijavam suas protetoras, tinha bolo, pipoca, guaraná Nordeste, refresco de goiaba, pão com manteiga, doces, pirulitos de açúcar queimado, cocada, café e até um Nescau. Depois voltavam pra casa, de mãos dadas, achando graça disso e daquilo, de peito inchado porque conseguiram recitar sem erros os versos em homenagem às suas mães.
E naquele dia tão bonito de domingo, quando as mães levavam seus filhos à missa da manhã em São Sebastião, pra alguns meninos e tantos adultos o Dia das Mães era coberto por uma tristeza infinita e um sofrimento pesado que nem uma pedra bruta. Era dia de o autofalante na Guarita, a Amplificadora São Raimundo, tocar o dia todo aquela música do Teixeirinha, o “Coração de Luto”. Eram filhos que homenageavam suas mães já mortas ou desaparecidas.
E o locutor ia anunciando o nome do filho que estava oferecendo aquela música numa lembrança sofrida. Em muitos casos as mães haviam morrido de parto, de tuberculose, afogadas, tiveram a casa queimada por uma brasa solta do trem ou foram embora e nunca mais deram notícias. E aquela música triste de Teixeirinha, “Coração de Luto”, era assim como uma forma de purificar pelo sofrimento naquele dia, trazer pra perto do filho que ficou órfão, aquela mulher que o deixou desgarrado no mundo.
E os nomes e os sobrenomes eram muitos. Raimundo, Maria do Carmo, Socorro, José, Batista, Inocência, Rita, Benedita, Francisco, Antônio, Vicente. Eram vários e eram os filhos que naquele momento da manhã se sentiam felizes. De certa forma havia uma lembrança, uma volta, um abraço do filho pra mãe naquela música. E até repetiam os pedidos das músicas tantas e tantas vezes, pagando mais que um cruzeiro. E quando eram filhos já adultos, ali mesmo na quitanda da amplificadora encostavam a barriga no balcão e se entregavam a beber aguardente tirando gosto com torresmo ou limão. (Crônica extraída do livro O Menino, de Pádua Marques)