Fato pouquíssimo conhecido na história do Brasil foi a viagem que o Imperador Dom Pedro II fez à Parnaíba, no Piauí. Ocorrida no final do ano de 1859, no período entre as festas de Natal e Ano Novo, há uma discussão histórica para saber se o Imperador passou a virada para o ano de 1860 na cidade. A viagem ocorreu durante uma das expedições que o monarca realizou pelo Brasil, enquanto visitava as chamadas províncias do Norte. Ainda em sua estadia no Recife, à época a maior cidade dessa região do país, ouviu falar sobre as riquezas do chamado Delta do Parnaíba e sobre a história de que seu pai teria dado um título único, “Metrópole das Províncias do Norte”, à Parnaíba, pela coragem em aderir ao movimento de independência do Brasil, no dia 19 de outubro de 1822. A cidade, na época já era bastante estratégica devido à sua proximidade com os Estados Unidos e a Europa, tinha certa independência do restante do país graças ao capital inglês e ao comércio de charque.
O Imperador chegou quase de surpresa. As autoridades políticas da região receberam a notícia de sopetão: — O Imperador chegará aqui em menos de doze horas. — A novidade se espalhou, deixando a cidade inteira em polvorosa. Corria à boca miúda: — O nosso defensor perpétuo estará aqui! — Outros se ufanavam: — Poucos locais têm esse privilégio. Parnaíba só vai ficar maior depois desse dia. Nós seremos a cidade luz. Daqui a alguns anos, quem sabe, alguém possa dizer que somos tão grandes ou até melhores que Paris. —
Todos os grandes fazendeiros e ricos comerciantes disputavam a honra de receber o Imperador e outros membros da corte em suas casas. É um debate entre historiadores o local onde ele teria se hospedado. Alguns afirmam que ele ficou na casa que pertencia à família de Simplício Dias da Silva, homem que chegou a governar toda a província do Piauí. Maçom e rico fazendeiro, Simplício dominava a vida econômica e política da cidade e da região. Participante ativo do movimento da independência, diziam ser ele grande admirador de Pedro I, apesar das futuras desavenças que levaram à perda de todo o seu prestígio, por aderir aos ideais da Confederação do Equador. Outros — especialmente os que pertencem à família — dizem que, na realidade, ele teria ficado na casa do coronel José Honório Andrade de Moraes, latifundiário cujo pai, dizem, havia sido rival de Simplício. Este era o patriarca de uma família em decadência, que agora vivia apenas de heranças, sobrenomes, velhos títulos, alguns cargos no governo e histórias para contar.
O mais aceitável, quase um consenso, é que Vossa Majestade tenha ficado em um dos casarões de dona Josefa de Moraes Gutierrez Mendonça. Mulata, filha de uma escravizada, foi criada pelo pai, de quem herdou fortuna proveniente de fazendas na região de Tutóia, onde nascera. Desse casarão, infelizmente já não mais resta mais nada, nem a antiga plaquinha que dizia que o Imperador havia se hospedado ali. O imóvel, estava localizado onde é hoje o armazém Paraíba. Há muito tempo, ele já vinha se deteriorando. Foi palco de importantes momentos históricos. Se tratava de um símbolo da cidade e do império. Com o advento da República, quase colocaram fogo. Além de outras hipóteses, o fato é que não faltaram puxa-sacos para coçar as barbas loiras do Imperador.
Pelos relatos, na época, a cidade, ainda muito provinciana, contava com a Câmara Municipal e a Igreja, que muito impressionaram Dom Pedro II pelo luxo, pela pompa dos azulejos portugueses e pelo antigo altar. Alguns cronistas comentaram sobre a reação do Magnânimo: “O que mais impressionou, sem dúvidas, o Imperador, era a proximidade que existia entre a Igreja Matriz — Catedral de Nossa Senhora da Graça — e a Nossa Senhora do Rosário dos Pretos.” Coisa nada comum no Brasil da época, já que em muitas outras cidades deveria sempre haver uma distância entre as duas igrejas. As elites locais utilizaram-se desse fato de maneira bastante esperta. Conhecendo a opinião pessoal do Imperador sobre a escravidão, a maior chaga da história desse país, e visto principalmente seu esforço para que, cerca de uma década antes, fosse proibida a entrada de novos africanos no Brasil, fizeram questão de usar esse fato para se passarem por mais humanistas, inclusivos e defensores da liberdade. Dizem que muitas famílias ricas, esconderam seus mais de quinhentos escravos só para discursar e alguns chegaram a promover cartas de alforria.
Houve festa. Depois da maior missa que a cidade já teve, o Imperador conheceu parte da elite e os estudiosos locais. Encantou-se pelos conhecimentos de José Tavares Correia, filho de um dos principais políticos do período. Era um estudioso e apaixonado naturalista. Grande responsável por expedições e desbravamento do Delta, ficou responsável por guiar o Imperador, junto de uma comitiva, até a região, em um pequeno barco de sua propriedade. A curiosidade e o fascínio eram visíveis nos olhos claros da Majestade. Tudo era anotado: espécies de plantas, animais, suas impressões sobre os mangues. Nos diários do Imperador, há uma página inteira dedicada exclusivamente a esse dia: “Esse lugar revela uma diversidade impressionante de espécies de animais e plantas. As ilhas e canais formam uma espécie de labirinto natural, com vegetação variada, muito bem adaptada ao ambiente úmido da região. Há uma espécie de palmeira muito comum que os habitantes locais chamam de ‘babaçu’, usada para alimentação e remédios. Outros tipos de coqueiros também se destacam ao longo das margens. As áreas mais alagadas são cobertas por plantas que flutuam tranquilamente na água. A fauna também é rica. Vi várias garças, com seus corpos brancos, se alimentando em contraste com a água barrenta dos rios. Ao longe, ouvi canto das araras e vi uma espécie de macaco se movendo entre as árvores. Outros desses mamíferos foram podem ser vistos em grupos, refugiando-se nas áreas mais densas da vegetação. O calor e a umidade são intensos, e o terreno está constantemente molhado, o que dificulta a caminhada. As plantas e animais são bem adaptados ao ecossistema aquático, criando um equilíbrio perfeito entre terra e água. É fascinante estar em um lugar tão intacto, com tanta vida ao redor. Porém, o que mais chama a atenção nesse espetáculo natural foi o episódio da revoada dos guarás. Ela ocorre todos os dias. O céu se transforma num tipo de palco, onde as aves são a atração principal. Voando em grupo, sua formação muda em um espetáculo incrível. Fiquei ali observando, sem nenhum tipo de pressa, enquanto seguia meu caminho.”
Na volta da expedição, o monarca, que não era adepto de festas e cerimônias públicas, foi surpreendido e cercado de homenagens. A mais emblemática foi uma nova rua rebatizada em sua homenagem, que já voltaremos a ela. Como retribuição, o próprio Imperador, junto da Marinha batizou um dos novos navios de “Encouraçado Parnaíba”, que acabou se tornando uma homenagem dupla. Fazendo referência não só ao rio, mas também ao episódio da ida de Pedro II à cidade. Afinal, o Brasil também tem história, não só geografia. Tanto é que o navio, posteriormente se tornou famoso em batalhas heroicas na Guerra do Paraguai.
A rua carrega até hoje um nome curioso. Ela foi pensada justamente para ser única, de uma maneira que ninguém esquecesse. Os parnaibanos não podiam ficar atrás de ninguém, então qual seria a melhor forma de homenagear o Imperador? Com um título. Mas qual, já que se tratava da maior autoridade do país, chefe de governo e de Estado? Era simples: todos sabiam que o Magnânimo Imperador era um homem culto, letrado, versado em pelo menos dez línguas, amante da educação, das artes e das ciências. O melhor título, então, para tudo isso, seria o de Doutor. Pensem, que outra cidade no Brasil daria uma homenagem melhor que essa? Nenhuma. Então, imagine só: Sua Majestade Imperial Doutor Pedro de Alcântara João Carlos Leopoldo Salvador Bibiano Francisco Xavier de Paula Leocádio Miguel Gabriel Rafael Gonzaga de Bragança Áustria, Defensor Perpétuo do Brasil e da Parnaíba. Isso tudo, somado a um Diploma de Mérito Municipal e uma medalha, que até hoje como tradição, é dado a grandes benfeitores da cidade de Parnaíba.
Aquilo tudo foi motivo para festa. Virou nome e placa de rua. A Banda Municipal tocou a noite toda. Banda essa, que para surpresa maior do Imperador, era composta apenas por homens negros. Alguns livres, outros escravizados. Ainda é contado que naquela noite, não houve quem dormisse. No outro dia, o Imperador foi embora, deixando todos tristes e tudo voltou à mesmice de sempre. A única lembrança desse tempo é justamente a placa, ali no Centro, ainda cravada com o nome da rua onde o Imperador pisou: Rua Dr. Pedro II. *Eric Vinícius é professor da rede particular, pesquisador de História, contista.