Briga de cachorro. por *Pádua Marques.

 

No meu tempo de menino não havia coisa nada mais inesperada, excitante e perigosa do que uma briga de cachorros. Mas era naquele momento de grande medo e algazarra que os meninos prestavam atenção e, vendo tudo aquilo, de uns cachorros mordendo os outros, os meninos iriam levar como exemplos pra vida adulta, quando fossem homens feitos, os instintos de defesa. Todo menino tinha por obrigação saber brigar, se defender e, estando dentro de uma briga, sozinho ou na turma, nada de fugir, correr pra dentro de casa.

Briga de cachorro é coisa inesperada. Basta aparecer uma cachorra no cio, que a gente chamava que estava viçando, pra que assim de um minuto pra cima virem de tudo quanto era canto do bairro, das ruas de cima e de baixo, de dentro das cercas e dos muros, aquela nuvem, aquela multidão de cachorros correndo e provocando medo por quem estivesse por perto, mulher, menino e gente velha sentada na porta da rua.

Quem ficasse na porta de casa falando da vida alheia com um pano de prato no ombro e se deparasse com uma briga de cachorro, era coisa de não acabar tão cedo a conversa. Teve até quem deixasse leite fervendo e o arroz no fogo e só se alertou quando sentiu lá do meio da rua e da calçada da vizinha o cheiro de queimado. E olhe que por causa de briga de cachorro muita gente, muita vizinha ficou intrigada com a outra pela vida toda, sem falar e nem passar na calçada. Coisa de dar careta, virar a cara de lado e dar o dedo no meio de todo mundo, até na procissão.

Porque briga de cachorro chamava atenção até de quem nunca teve um cachorro em casa. De repente era de aparecer na rua uns desses cachorros brancos, brancos encardidos, pretos, listrados, patacados, castanhos, marrons, de pelo crespo, os de ponta de rua, os de mercados, de dentro de cercados e de muros e aqueles com cara de onça. Cachorro de tudo o que era raça, tamanho, procedência e sem dono, desses com cara de vadios. Cachorros saídos do oco do pau, feios, os cheinhos de carrapatos até os caroços dos olhos.

E aquela aflição toda deles correndo na rua, pra cima e pra baixo atrás da cachorra. Um aqui querendo subir na pobrezinha. Ela pra se defender, mordendo um mais afoito enquanto tentava entrar em algum lugar seguro. E entre os que iam ficando pra trás, uns iam mordendo os outros, passando por cima dos pequenininhos, aquela desordem sem fim, fazendo um pedreiro cair da bicicleta. E era nesse instante que às vezes chegava um menino mais pra perto e com a maior falta de respeito jogava areia no meio deles. Porque menino, tinha quem dissesse, era a imagem do Cão.

Briga de cachorro nunca foi ocasião pra ninguém se meter. Cachorro brigando, ninguém chegasse perto. E os meninos, olhando uns pra os outros, calculando ocasião de fazer uma judiação. E os gritos, as vaias, jogavam a areia da rua pra cima fazendo vez de chuva pra ver se acabava aquela contenda medonha. Mas parecia que era pior. E tinha menino até mais perverso que jogava pedra, tiro de baladeira, dava paulada. E lá de dentro de casa alguma velha feia e incomodada com aquela arrumação toda achava de trazer uma bacia com água e jogava no meio deles. Adiantava não. A coisa ficava sem jeito.

As meninas, as mulheres e mães puxando os meninos pequenos curiosos e com rasgo de medo, as velhas cambotas, tratavam de entrar e fechar as portas pra ver a briga dos cachorros pelas janelas, dando opinião quem seria o vencedor, quem era o mais feio, o mais bonito, aquele sujo mais lá no meio dos outros, de onde era aquele ou aqueloutro mais adiante mais parecendo um sabugo.

Se alguém tentava apartar, era pior. Quanto mais se chegava perto, se tentava acabar com a briga, era como jogar querosene em fogareiro. O jeito era deixar de mão. Aos poucos aqueles que não tiveram a atenção da cachorra viçando iam saindo do bando e tomando o rumo de onde vieram. Alguns até feridos na boca, nos quartos, na barriga, na altura dos olhos e das orelhas.

E os meninos iam voltando aos seus lugares na esquina de casa, uns achando graça, contando esse ou aquele feito. Outros se pabulando. Mais outros querendo falar mais que os outros e mais outros meninos já maiores falavam sobre os cachorros fazendo aquelas coisas, uma curiosidade já de quem estava saindo da infância. Dali daquele instante extraordinário e tão cheio de surpresas e medo, aquela briga tão desigual e perigosa de cachorros, quando tudo poderia acontecer, os meninos de meu tempo iriam tirar lições de valentia, liderança e astúcia. Essas coisas de levar pra vida de homens de barba no queixo. Pádua Marques, romancista, cronista e contista. Texto extraído do livro OMenino. 

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Pádua Marques

Jornalista, cronista, contista, romancista e ecologista.

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