A negra que abanou os queixos de Simpilição. Pádua Marques.

 

Negra Gonçala procurou relho pros couros e palmatória pras solas das mãos. Naquele domingo da entrada de junho achou de trazer pra o largo da matriz uma penca de filhos e netos, pronta que estava pra batizar um deles. Achou que, sendo antiga criada da casa de Domingos Dias da Silva, alforriada e tendo passado parte de sua vida com a barriga encostada no fogão daquela casa, tinha direito a ser tratada, ela e os seus, como gente do palácio.

Eram mais de quinze negros entre homens mulheres e crianças, todos vestidos com suas melhores roupas de domingo e que desceram do Testa Branca pra assistirem missa e batizarem o menino. Negros que davam uma guerra. A missa daquele domingo foi a de costume. O velho Domingos, a mulher e os filhos e alguns poucos convidados. Nada de cativos e agregados dentro da igreja. Se quisessem, que assistissem do lado de fora!

Mas a negra Gonçala estava na moita e esperando uma brecha pra convencer o padre a batizar o neto. Seria motivo de orgulho mostrar a afeição que os donos lhe deviam pelos serviços prestados na cozinha. Conhecia a família Dias da Silva como a palma da mão grossa de retirar panela de ferro de cima das trempes. Conhecia o velho Domingos, a mulher e os dois filhos, Simplício e Raimundo. Trocou cueiros, deu banho e passou talco neles. Achava que tinha direito a ser igual a eles.

O padre estava já guardando os paramentos, cálices e se preparando pra deixar o altar quando negra Gonçala chegou perto e disse que havia saído do Testa Branca  de madrugada com a família pra, se merecesse e fosse do agrado dele, batizar o neto, que dentro de mais alguns anos iria servir de escravo aos seus donos. Domingos Dias da Silva ainda cochilava quando ouviu aquela proposta mais fora de hora. Acordou feito um cão saindo da fornalha.

Não se enxergava não? Onde já se viu negro dentro da igreja?! Que diabo é que quer negro dentro de igreja? E mais ainda batizar filho ou neto! Quem desobedeceu sua ordem pra permitir uma ousadia daquelas? Os convidados vendo aquele destempero do dono da freguesia da Parnaíba foram tratando de escapulir pelas portas dos lados, ali pros lados da Câmara Municipal. Negra Gonçala estava com as petecas dos olhos quase saltando em cima do velho português e de seus filhos.

Disse que nunca passou pela sua cabeça desrespeitar ordens, mas achava merecimento seu batizar o neto naquela igreja. Domingos estava furioso. Disse pra quem quisesse ouvir que naquela igreja negro não haveria nem de passar na porta, que não se enxergavam e que olhando bem, não eram e nunca foram gente. A coisa foi esquentando e negra Gonçala aguentando toda aquela descompostura. Começou a jogar praga e a espumar pelos cantos da boca.

Simplício, o filho querido de Domingos Dias da Silva, achou de botar mais lenha na fogueira. Disse que aquele lugar não era pra espetáculos daquela natureza e que Gonçala e os seus se retirassem senão o bolo de palmatória e o relho iriam cantar. Nem haveria de respeitar o domingo e quanto mais o padre. A velha escrava saiu xingando os donos enquanto os filhos, noras e netos se distanciavam. Simplício não se conformando com o que disse veio pra o largo da matriz e desacatou um dos negros. Chamou de filho dessa e daquela. Um deles correu a mão na faca que trazia na cintura e mandou que corresse dentro. Foi um rebuliço dos diabos na frente da igreja. Teve gente correndo e espalhada até pelo Armazém Paraíba e o Bar do Farias.

Raimundo, metido a valente, correu na cerca do cemitério do burro e arrancou uma estaca. Alguém disse que iria chamar o juiz porque a coisa estava ficando sem controle e poderia ocorrer até morte. Negra Gonçala estava agora sentada e se abanando embaixo de um pé de manga ao lado da matriz. O SAMU já estava de prontidão e tudo. A família, que se preparou toda pra o batizado descendo do Testa Branca naquela manhã de domingo, agora estava mais distante e mais acalmada porque chegou a Guarda Patrimonial.

De repente Simplício saiu de dentro de casa e veio negociar. Negociar porque Gonçala prometeu que só arredava o pé da frente da igreja se o padre batizasse o menino. O futuro dono da casa grande vendo que não tinha saída pedia penico. Foi chegando e chegando até que ficou frente a frente com negra Gonçala. Chegou e mandou que se levantasse. Que conversa era aquela de querer batizar negro dentro da igreja? Quem foi que inventou aquela história?

Gonçala deixou Simplício Dias da Silva falar suas verdades. Ele disse que negros não eram gente, que se colocassem nos seus lugares. Voltassem pro Testa Banca porque era capaz de mandar queimar as suas casas e aí nem o mel, nem a cabaça e nem o batizado. Gonçala perdeu a paciência que havia guardado. Chegou bem perto de Simplício Dias da Silva, abanou os queixos dele e disse que ele não era nem besta. Ela sabia de tudo e mais um pouco de tudo da família.

Quem prestava e quem não prestava. Era sair e espalhar no Bar Carnaúba, no largo dos pipoqueiros, fila da Caixa, Banco do Brasil, Secretaria de Fazenda e na frente da Banca do Louro. Queria ver ele e a família dele proibirem batizar seu neto na matriz de Nossa Senhora da Graça! Mas se não era possível, tudo bem. Iria levantar dinheiro pra construir a igreja do Rosário. Foi o que fez.

Pádua Marques é membro da Academia Parnaibana de Letras. Este conto faz parte do livro Vinte Contos para Simplício Dias. 

 

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Pádua Marques

Jornalista, cronista, contista, romancista e ecologista.

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