As linhas do pensamento faziam com que eu navegasse por um ocioso rio. Quando decidi ir à portaria do prédio fumar um cigarro. Na primeira tragada, lembrei do gosto do Marlboro Vermelho, não posso mais pagar doze reais em um maço. O salário não dá para quase nada, isso seria um luxo. Preciso contentar-me com o Rothmans Azul, seis e cinquenta são muito mais acessíveis.
No quarto ou quinto trago levei o olhar para um ponto distante da rua, avistando uma série de panos velhos espalhados, eram dos moradores, à medida que o comércio dorme e o breu da noite toma conta das calçadas, eles voltam para descansar em suas camas de concreto. Andando ali vemos poças pelo chão, e o odor não deixa dúvidas que aquilo não é água. Em um passeio na Bahia, vi pessoas mijarem no meio da rua durante uma festa de Carnaval por pura falta de educação. Aqui, não. É pela falta de lugar.
Urinam a necessidade. Muita gente fala da vida miserável dos pobres, mas boa parcela se limita a repetir jargões sobre os problemas sociais. Poucos são os que entendem o verdadeiro sentido de certas palavras. A caridade por exemplo é bradada em um tom cheio de afetações por quem finge ou de fato acredita sentir os mais profundos sentimentos pelos indefesos.
Próximo ao fim do cigarro, já quase queimando a ponta dos dedos, senti um aperto no peito. Não queria voltar para atrás daquela mesa de escritório, nem responder e-mails, tampouco sentir o frescor do ar-condicionado. O balcão me dava ânsia. Eu queria poder estar ali na calçada, vendo os outros passarem, imaginando e descobrindo. Sentindo o calor do asfalto, o barulho das buzinas e o cheiro de gente.
Até que descobri em meio ao martírio de um incrédulo olhar de quem não olha para lugar nenhum, próximo de algumas tralhas que observava momentos antes, havia surgido uma mulher. Pele morena, muito queimada do sol. Estava jogada no chão brincando com um moleque. Não devia ter trinta anos, e ele não tinha sete. Fiquei olhando o negrinho descamisado a pular, como pode ter alegria pisando em mijo? A mulher puxou para perto dela uma mochila velha, sua cor quase indistinguível em algum momento havia sido lilás.
Tirou uma garrafa de água e um caneco de alumínio. Imaginei que iriam se hidratar, mas ela buscou um embrulho na bolsa, fazendo surgir uma pedra de sabão de óleo. Com os dedos finos, desceu a bermuda surrada do moleque e despejou um caneco de água sobre sua cabeça. Aumentei minha atenção, agora a esforçada mãe esfregava o sabão por todo corpo do seu pequeno filho. Ele estava nu, a pingola de fora sem nenhuma vergonha. O menino de rua toma banho, mas cresce sem saber o que é estar limpo. Não se constrange com a nudez, pois não conheceu a intimidade. Talvez, o primeiro cheiro que tenha sentido seja o cheiro de lixo. Se aquele menino soubesse que um tal Rebouças lutou por ele um dia, tudo seria diferente. A República foi incapaz de consolidar a coisa pública. De sonhos a ilusões, nossa gente ficou chagada. Talvez, o sonho do moleque seja comer um sanduíche do velho que passa arrastando um carrinho pela rua toda tarde. Ficando a especular o mágico momento em que pediria um cachorro quente com aquele molho amarelo, que ele não sabe o nome, mas que dava água na boca. Como devem ser tristes os dias que não conseguem nem um trocado para comprar marmita ou biscoitos.
Na rua, às vezes a comida é tirada do lixo. Com bicho andando. Eles poderiam pensar em qual Cruz chutaram para disputarem alimento com vermes. Mas, quem tem fome, não pensa. Bagaço de laranja e feijão azedo viram banquete. Não existe alegria maior para essa gente do que quando alguém vai ao restaurante, e pede para juntar as sobras em uma marmita para dar aos famintos da rua. O meu amigo não conhece o sabor do achocolatado que as outras crianças tomam de manhã, mas conhece o gosto da fome que queima o estômago. Lembro-me da nobre Carolina que dava duro catando papel para pôr comida na mesa dos filhos. Profunda tristeza é ver que nada mudou, o progresso continua a se esconder dos miseráveis.
O menino está sorrindo. Sua mãe agora o veste com outra muda de roupa velha. A criança é tão pura que sorri, enquanto nós queremos gritar as lamentações de Carolina: “chora, criança. A vida é amarga”. Existe uma tola preocupação economicista de que o nosso país vai quebrar e as pessoas passarão fome, o que não percebem, é que muita gente não recebe os princípios mais básicos de dignidade. A dignidade é uma necessidade.
Comecei a caminhar na direção deles, ouvi o moleque dizendo que tinha fome.
- Qual teu nome, garoto?
Ele me olhou assustado, arregalou os olhos pela surpresa de uma luz nova
na vida – a de saber que existia. A mulher respondeu de forma trêmula:
- Carlos… se chama Carlos,
Perguntei pelo dela, disse-me que era Nila, puxei uma nota de cinquenta e outra de vinte do bolso.
- Pegue, Dona Nila. Compre algo para vocês.
- Carlos sorriu de modo radiante e estendeu a mão para um aperto. Fui voltando ao prédio, virei o olhar uma última vez para trás, os olhos da mãe brilhavam. O menino que pensei precisar de ajuda, me ajudou. Ao sorrir, ele quem foi caridoso comigo. Antes de voltar ao trabalho, fumei outro cigarro. Antônio Ferreira Rabelo Neto é professor, Atualmente mora em Araçoiaba da Serra, São Paulo.